A RCSM Advocacia, juntamente com a Vereadora de Porto Alegre Laura Sito e com o Deputado Federal Paulo Pimenta, elaboraram uma carta endereçada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a situação de extrema gravidade vivenciada pelo Brasil em razão da pandemia de Covid-19. No documento, os signatários destacam o conjunto de ações e omissões realizado pelo Governo brasileiro, que reflete nos números de infectados, no caos do sistema de saúde e no altíssimo número de pessoas mortas.
Leia a carta na íntegra:
CARTA À COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
À SRA. PRESIDENTA,
Antonia Urrejola Noguera
AO SR. RELATOR PARA O BRASIL,
Joel Hernández García
À SRA. RELATORA ESPECIAL SOBRE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E AMBIENTAIS,
Soledad García Muñoz
A situação de extrema gravidade vivenciada pelo Brasil necessita de amparo internacional, em razão das inúmeras e recorrentes violações sofridas no plano dos direitos humanos – mais especificamente quanto ao problema sanitário decorrente das ações e omissões do Estado brasileiro durante a pandemia do Covid-19.
Os dados, tanto dos órgãos oficiais como dos veículos de imprensa, apontam para a existência de um cenário catastrófico no cuidado com a saúde e, consequentemente, na proteção à vida da população brasileira. O país ultrapassou a triste marca de 3 mil mortes diárias e 300 mil mortes desde o início da pandemia, sem que haja qualquer plano ou planejamento governamental para a reversão deste quadro.
Pelo contrário. O Sr. Presidente da República, Jair Bolsonaro, tem atuado deliberadamente contra a vida de brasileiras e brasileiros, e o que inicialmente era negligência – o que por si só já demonstraria o tamanho do problema – se torna a cada dia uma política pública deliberada, com evidente intenção de contrariar, repelir e desobedecer tanto as recomendações da Organização Mundial de Saúde como demais evidências científicas e, mais grave ainda, estimulando a população a fazer o mesmo, em um verdadeiro espetáculo terrorista de flerte compulsivo com a mentira e inimigo do bom senso.
Até o presente momento, o Estado Brasileiro vem praticando os seguintes atos em relação à pandemia:
- Menosprezo e deboche do vírus por parte do Presidente da República, que inclusive o equiparou, durante pronunciamento oficial, a uma mera gripe comum;
- Omissão quanto à necessidade de imposição de distanciamento social e/ou lockdown, com ameaças expressas do Chefe de Estado para Governadores ou Prefeitos que eventualmente realizassem tais políticas;
- Estímulo à desobediência civil contra as normas restritivas de circulação para conter a pandemia impostas por alguns Governadores, bem como ingresso judicial para tentar barrá-las;
- Desestímulo ao uso de máscaras, ignorando a sua utilização em eventos oficiais e disseminando notícias falsas quanto à sua efetividade. Declarou, por exemplo, que ela prejudica a saúde, por, supostamente, provocar a inspiração de parte do CO2 expirado;
- Atraso deliberado na compra de vacinas, promoção de desinformação sobre a sua eficácia e desincentivo à sua aplicação;
- Intenção de não realizar a testagem em massa dos brasileiros, sendo que 6,8 milhões de testes do tipo RT-PCR estiveram no limite da validade sem terem sido distribuídos;
- Estímulo à realização de aglomerações, inclusive com participação pessoal do 1º mandatário do País em diversas manifestações ou celebrações (que incluem saudação à Ditadura Militar no Brasil ocorrida entre 1964 e 1985);
- Realização de propaganda explícita de medicamentos e tratamentos sem a devida comprovação científica, em detrimento da utilização de vacinas.
O conjunto de ações e omissões realizadas pelo Governo brasileiro é causa protagonista dos resultados que o país vem obtendo em relação às infecções, caos no sistema de saúde e altíssimo número de pessoas mortas.
Essa conclusão deriva do reconhecimento da extensão e da competência do sistema de saúde que, ainda que seja precário, tem a experiência exitosa em todos os casos de vacinação em massa realizados no país.
O Estado brasileiro, portanto, não observa diversas normas internas e internacionais que determinam o direito à saúde em qualquer condição, para qualquer cidadão, como o, Protocolo de San Salvador:
Artigo 10
Direito à saúde
1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem estar físico, mental e social.
2. A fim de tornar efetivo o direito à saúde, os Estados Partes comprometem se a reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a adotar as seguintes medidas para garantir este direito:
a. Atendimento primário de saúde, entendendo se como tal a assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade;
b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado;
c. Total imunização contra as principais doenças infecciosas;
d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra natureza;
e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas da saúde; e
f. Satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.
Também a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem preconiza nesse sentido:
Artigo XI. Toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas sanitárias e sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos correspondentes ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade.
Compreende-se que a pandemia de um vírus letal atinge a todos os países do globo e, como tal, representa per se uma ameaça à vida. Não obstante, há também uma dimensão e uma responsabilização da ação humana e do Poder Público, pois há distintas maneiras de enfrentar a crise de saúde, podendo-se, a partir da ação do Estado, agravá-la ou dirimi-la.
Desse modo, as ações deliberadas do Governo brasileiro, em desacordo com as recomendações médio-científicas e orientações da Organização Mundial da Saúde, agravam a pandemia e, por extensão, ameaçam o direito à vida, inviolável pela Constituição Federal de 1988, e o direito à integridade pessoal, levando o país a uma crise humanitária e ao maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil, segundo a Fiocruz. Consequentemente, o Estado brasileiro fere Tratados e Convenções Internacionais das quais é signatário, entre elas a Convenção Americana de Direitos Humanos, no que estabelecem os Artigos 4º e 5º, e o Artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No plano interno, esse quadro já motivou ações judiciais tanto para responsabilizar o Governo Bolsonaro quanto para garantir a aplicação de medidas responsáveis diante da pandemia. No momento de maior gravidade da crise no estado de Manaus, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil solicitaram ao Supremo Tribunal Federal que fosse aplicado lockdown em Manaus e que o uso da Força Nacional fosse autorizado na cidade.
Sob argumento de limitação do Poder Judiciário, o pedido foi negado, mas o Executivo foi instado a apresentar o seu Plano de Enfrentamento à covid. Com isso expôs-se a falta de planejamento, de coordenação e de controle. Ademais, evidenciou-se que o Governo Federal soube da iminente falta de oxigênio seis dias antes de o insumo se esgotar em vários hospitais, o que provocou diversas mortes por asfixia.
Este caso lamentável é ilustrativo por dois motivos. Primeiro, pois é mais uma demonstração da violação de direitos humanos provocada pela negligência do Executivo brasileiro. Segundo, pois o Poder Judiciário nacional, inclusive a Corte Suprema, vê limitada a sua capacidade de ação para reverter os equívocos fatais do governo Bolsonaro, demonstrando a necessidade de amparo internacional.
Este amparo demanda celeridade, uma vez que a curva de contágio cresce exponencialmente, o colapso hospitalar já é uma realidade e o enfrentamento ao vírus é uma corrida contra o tempo, exigindo uma velocidade de resposta às ações e omissões do Governo Federal incompatível com o tempo processual doméstico.
Enquanto isso, a população brasileira segue em risco, tendo os seus direitos violados, e cresce a influência do Governo Federal nas gestões estaduais e municipais. Neste momento, a região sul, após reproduzir as ações e omissões do Sr. Presidente da República, é o epicentro da doença no Brasil. À título de exemplo, o Sr. Prefeito de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, além de adotar medidas irrestritas de flexibilização, solicitou 25 mil doses de hidroxicloroquina ao Ministério da Saúde com vistas a produzir uma falsa sensação de segurança aos cidadãos. O medicamento sem eficácia foi prioridade de aquisição e produção do Governo Federal, e o Sr. Presidente defendeu, inclusive, conduta temerária de nebulização da medicação, uma forma de ministra-la por via ainda não testada, representando um risco à saúde.
Como resultado da flexibilização e da aposta em tratamentos inadequados, a cidade de Porto Alegre vive um momento dramático, os leitos de UTI ultrapassam 100% de ocupação e unidades de pronto-atendimento chegaram a operar com mais de 400% de superlotação.
Diante do exposto e com a devida vênia, solicitamos que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos efetue um comunicado público chamando as autoridades nacionais às suas responsabilidades no respeito aos direitos humanos– em especial ao direito à saúde, à integridade pessoal e à vida-, bem como solicite esclarecimentos acerca dos atos e omissões mencionadas, de modo a assegurar a proteção aos direitos da população brasileira.
Assinam este pedido:
Laura Sito, Vereadora de Porto Alegre
Paulo Pimenta, Deputado Federal
RCSM Advocacia